do neo-canibalismo ao tretoterismo, o caótico corpus do movimento homeostético, suas tricas, sequelas, etc.

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

AZERTES DE UMA GALINHA




Em certo dia do século XII
dois monges açoitavam uma vaca
à luz do candeeiro - que gôze!
Puzeram no cabelo muita laca
e foram vender Patos para a praça
(mas os sacos tinham muita traça!).

Dois marrecos fugiram perto das quintas
e puseram-se a galar os galináceos
mas havia um que se estava nas tintas
porque preferia Epilogos a Prefácios
e pôs-se a cantar num “delirium tremens”
e a rezar avés marias e améns.

Qu’é da galinha, esse ser de capoeira?
Diz a história que se foi embora c’o boi
e o galinho foi assado na fogueira
(“e na fogueira bem assado foi!”).
Assim finda a história com tanto farelo
que a agulha já não passa entre o Camelo.

SAGA DE PEDRO PUTANHEIRO NA CIDADE DO PORTO


BURGO ONDE BÈNUS É RAÍNHA
E É TUDO DO CARAGO
DO CARAGO



Anoitece. Já as cricas roçam os tecidos
em que sórdidos casais tripeiros
arrefecem seus animos em mungidos:
os ardores parecem os derradeiros.
O audaz Pedro, da anterior noite recomposto
nas mui tipicas mercearias de S. Bento
largas camisas compra a seu gosto
para mais tarde dar aso a seu contentamento.
Há no ar um cheiro doce e rafeiro
capaz de entusiasmar o mais capado
e quais penas molhando no tinteiro
não é tripeiro quem não sabe dar ao rabo.
Ajuda-me Musa, a contar os suplícios
que tal caralho infligirá à putaria,
mãe do vinho verde, do foder e outros vícios,
Porto fatal, filha da bestial luxúria.
Eis que ao longe avista nobre peida,
esférica, colossal, apetitosa e com cheiro
e Pedro deliciado com tal Nereida
inicia nova empresa de azeiteiro.
Já suas cuecas magramente não suportam
os furiosos impetos que o mangalho atormentam
e como os que a molhar a sopa não se esgotam
os falsos e púdicos animos se afugentam.
Rápidamente sua suada mão a alcança.
Afinfa-lhe os dedos àgeis na baliza
e se ela hesita entre o medo e a gostança
já ele sente os molhos espessos da petiza.
Coitada! Entre às astucias do vil indicador
e c’oa berguilha aberta e inundada!
Que rudes intrigas preparará o sedutor
p’ra lh’a enfiar logo de enfiada?
Empurra-a para uma escada com desprezo,
descasca-lhe o que envolve os seios com pujança
e quando já sente a fornalha do bom teso
a aproximar-se, a convidá-la para a dança
seu gordo entusiasmo não para de engordar
e mil liquídos começam a ensebar
os encarquilhados lábios desse vasto mar
em que inumeros marinheiros ousaram embarcar.
...............................................................................
Foram mais de mil e uma nessa noite
que saboreou, usou e desprezou,
tanto esperma, tanto sangue, tanto açoite
mas é muito mais o que guardou.
Nem Gargantua seria capaz de tal proeza
inda capaz de manter sua chama acesa.
.........................................................................
Não mais, não mais cantarei tais chulos,
violadores inconsequentes de embriagadas,
que das galegas só aprovam os “culos”
esquecendo-se de provar as empanadas.
Porto, há já muito que Bénus merecia
caralhos que fodessem com nobreza
e não tripeiros queixando-se de azia
e incapases de a segurarem bem tesa.
Se a tua putaria é de estirpe Lusitana
há só um homem que as arrefece
é Pedro Putanheiro, e é tanto o que mana
que jamais puta alguma o esquece.

O ORGÃO HUMANO













O Orgão
não é um orgão nem um organismo
mas um porco reclinado
sobre a madame Pompadour.
O Orgão Humano entra acompanhado do Homem-Torrada
mas o Homem-Torrada está torrado demais:
o Homem-Torrada é chinês
mas devia ser preto
porque nós somos racistas
e ele enraba-nos.
O Homem-Torrada abre o fecho-eclair
e fecha o fecho-eclair. Depois bate com a porta
e exige uma porrada de dólares.
O Homem-Barbatana tem um cofre
onde guarda as cartas do Homem-Torrada.
Ás vezes canta baladas
rodeado de fadas
que tocam concertina.
Lá em cima está o tiroliroliro.
Cá em baixo está o tiroliroló.
O Orgão Humano agarra na garrafa
e bebe o mijo dos três.
Estamos todos divididos
entre nós mesmos e ninguém.
O Homem-Tomada atrapalha-se
e liga a torradeira errada
onde está peixo frito
e o inimigo capitalista:
o Tio Patinhas.
O Homem-Candelabro fica embaraçado
porque já era candelabro antes de Bach compor
as Variações Goldberg
que mais tarde fizeram o Homem-Martelo
ficar agarrado à heroína.
Entra finalmente em cena o
Homem-Parafuso ( que por sinal
não tem orgão mas
a falta de qualquer orgão),
sente-se nele um certo desagrado.
Senta-se na poltrona e liga a televisão
e não se peida, mas peidam-se em coro
as vacas que o acompanham.
São vacas Teutónicas
boas para dobrada à moda do Porto.
Elas têm tatuagens nazis
e namorados com bigodes
para provar que são viris.
A rima poética já foi um assunto sério ¾ há até quem ache
que as clepsidras deviam ser usadas pelas mulheres a dias
e vice-versa
e
virgula também
que o tempo apaga o pó
e transforma-o inevitávelmente em gente
o que é como quem diz
as peças transformam-se em vidas
e os dias em anos
e as sombras em carne e osso.
Basta.
Havia mescal
como no Under The Vulcanoe
mas era de má qualidade
falsificado no Barreiro
por judeus marroquinos.
Ninguém estava quase bêbado
e já há muito tempo
que não tinham a sobriedade por companhia.
O Homem-Parafuso senta-se em cima do piano
e enche o tampo de súor
mas um suor negro
que poderia ser do Homem-Torrada.
¾ Sinto-me só!
Ele mastiga pastilha elástica
e volta a beber mescal
e uma professora de alemão come-o com os olhos.
Os olhos dela devoram-no lentamente e ao piano também
mais tarde vai à casa de banho e constata que
tem lombrigas
(carnívoras?).
Isto é o drama de um homem que tem vinte e três mas poderia ter
quarenta ou cinquenta e tal.
O seu mundo (pensa ele)
é uma autêntica teia de aranha
(ou será um ninho de andorinha?).
Viver é como procurar as letras numa máquina de escrever
desconhecida, é procurar a afinação temperada
que afinal não existe.
Neste momento acendo um cigarro e vejo
que o fumo tem a forma de pequenos porquinhos,
de porquinhos metafísicos que gritam “Papá! Mamã!”
Esses porquinhos são os mealheiros
em que o Orgão Humano depositava todas as esperanças
dos seus e talvez dos nossos
antepassados.
Agora já podemos morrer em paz!

No Terraço de Helena Heitor come Espargos











poemas inéditos
de Aquiles Farinha


(poderá encontrar uma versão ilustrada no triplo V



Primeiríssima de duas partes
ou a chamada
Epístola de Narcíso aos lírios


As orcas nadam nas nódoas
entre as ovas lentas das sebentas.

No segredo-odor dos Argivos
castram-se varões altivos.

Argumentam aqueles que não aguentam
arguidos de Tirésias idos.

Patéticos porque filhos filhados
ou afilhados das fobias.

As escovas das alcovas
guardam-se nas traseiras dos travesseiros.

Levitam os Leviathans.
Não é o que dizem os Levitícos.

Não há troça
digna da alcachofra.

Amanhã veneno
e o épico aceno.

Plasticínico  em tratados de lábio.

País até Não-Ser.



Junto ao Branco  um dromedário.



Dorme Dário
com a Odisseia à cabeceira.



As ruivas lamentam sardentas
os espinhos de Adão.
Este picou-se
como se sabe na mão
ao tentar colher o fruto proíbidão.



Abri a custo a conserva
no interior a tua mão.
Abrir enerva.


Limões bicudos nas pontas
como tias tontas.
Limonadas frescas
durante as touradas.
Salomão e o seu salmão
fumado pelo fado.



Da coerência indiferente &
Da maningância da relutância.



Ele está como um mouro
para o rio Douro.



Mais acima, por favor!


Gramática



Altos e ao léu os castelos
ergem-se redondos como bolos.
A prima disse-me então:
cavemos um fosso dentro da Torta
para que possamos chegar à Sua Horta.


A menina pegou na agulha
e picou-se.

Ò filha, não se bordam as letras assim!
Era aquilo a que Deus chamava a Gramática.
Ai que didática!


Mauritânia



Lindo, é lindo! Chega!... Arregaça
o Santo Graal! Não cheira mal!


No Orto o chinfrin do berbequim...
A madrinha da vizinha usava um leque
de pechisbeque.


Madalena! Achas que valeu a pena?
O teu coração é um amendoím
e amar-te-ão assim
na aldeia dos Macacos.



Estavas de rastos?
Não! De ratos!


Parte segunda ou secundária
tal como a primeira
onde Zeus
entre anónimos Corifeus
mostra o pénis.
Apesar da encenação escandalosa
ninguém dá por isso.

Dalila vai à fonte
com o papagaio na vagina
os homens andam a monte
e ela toca concertina.





Orou! Ao verso misto deu a face.
Mas foi clássico o desenlace.





Entrou! Os porcos transformam Circe.
De que se lembra Euridice?





O que fica então
deste mundo já vão?


Come de côr, niño!
Come de côr!



As ondas do mar de Vigo
vieram ter comigo
e o meu amor que lá ora
foi-se logo embora!



Estar no têr quebrou Amor.
Cansa-me o Ele. Nada me hei-de.
Fica-Te no hás- Ou no Às?
Venham as Copas e a manilha.



SECRETAS AS TENEBRAS
NÃO SE DÃO DEVAGAR


Crise & Ode



Musa travesti. Não há memória
de dedicatória.


O cego que colhe os intestinos destinos
caga um ditirambo
ao ritmo de um Mambo.
Entre nado e nato.


O tal destino é um serviço ao Isso.
Tem fé na Glória. Serás herói
em tronos de Troia.
Agarra a boia.
Serás Idolo entre mil
e as focas rir-se-ão ao serão
banqueteando-se de amoras.
Silvestres as Horas
e as Graças também.


Musa difusa
de Delfos cumplice
os Trácios mistérios
são o teu colchão.


Mas não te falta Tacto
e quando as assaltares
as muralhas recusar-se-ão.


Rio que lavas no Povo



Finito deserto. Ladaínhas de irmão
no porão. Desabafo.
Dlo Nfo.
Espetadas estoicas
no pórtico.


Os cinicos esfregam-se Lama
e algum guru enfia um lingam no cú.
A ària era outra. Piroscas.
Lolitas de roscas. Faz-de-conta
que não havia impostos.


No Índico (ó mar, ó mar)
o meu Duplo aguarda tubarões
e Marta joga Golf.


CAMILA A PEÇONHA

(finale con sprezzatura)



“Como um tumulo dessa Alma,
como um pélago desse entreaberto 
severo para bebê-lo!


e a minha obcessão por noites Ardente
e meu degredo pelo mármore gelado-alucinado
num pesadelo fechado.
Desse lábio de medo/segredo
lábio fui teu lábio.


Correcto meu ósculo. Oscular quieto
de mármore discreto-sereno...
Cheio de pavor esfriou!”

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Neo-Cannibal Proclamation & HOMEOSTETIC MANIFESTO





Art is INTENDED for the Hunters of HUMAN FLESH
It is
A frenetic state of captivation


“Gnawing on a bone if possible
is the Portuguese dream of the good life”
(Jorge de Sena)

Eating (preferably human flesh)
Is the foundation of any possibility.
Refusing autophagy
(what will be the flavour of that which we already know)
we propose amorous voracity
because man loves
above all and everything
HIS FELLOW CREATURE

To eat, To err, To defecate
Aureal Disorder
United to PLEASANT ORDER
The Act of Creation presupposes
either
a bucolic inferno
or
an unsustainable paradise

Our starting point is a magnificent sociological situation:

1. no-money. Our country is generically poor without being too poor. We lie on the boundaries of the rich and little else. We are treated with a due level of disrespect, without resentment, by those who own capital. Our future does not look very rosy.

2. art consumption (importation). We import as much as we can, and badly, and we export next to nothing. Due to the lack of a national market or institutions with vision (although some have genuine capacity), we import models from abroad without taking time to digest them. We participate in the legitimisation of the cultural imperialism that accompanies economic colonialism.
State colonialism has ended, with obvious advantages for the ex-colonialists, who continue their business dealings without the inconvenience of having to associate with the masses: full-time dedication.

3. Low level of production. We produce very little because we are bunch of Moors and Southerners. But so were the Greeks and the Renaissance Italians! So we have no excuse. Our low level of productivity derives from a lack of enthusiasm best typified by the Fado and the sweet nostalgia of the Saudade. Idle leisure is good for the soul and is the father of many things, but shouldn’t be confused with inertia.



4. Difficulty in admitting influences. Originality only exists in the minds of vulgar people. Originality only becomes truly original when all influences have been properly digested. In order for this to happen, we must be open to so-called influences. Finally, we must have the courage, little by little, to rid ourselves of such influences. Any innovator harbours a wealth of influences.

We do exactly the opposite. We drift. We allow economic impossibilities to occur astutely. We ensure that chance is never left to chance. That minds pull together and unite. Without clarification there is no room for innocence. Neo-cannibalism proposes a history before history began, an art that dispenses with the need for industry. Hyper-cultish work for the masses. Without fear of egocentricities or insolence!
Why not?

February 1982





I



We dress ourselves with the mathematical clothes of illuminated despotism as we launch crises into oblivion, closed within a central fraternity, in a space and time that has been constructed and deconstructed for our habitation and transgression; organising while disorganising, more or less in an exhibitionistic manner, allowing our bodies to be seen or re-seen, as they narcissistically dive into the labyrinths of our own image, in a mirror that is uncontrollably transcended simultaneously with the object that is therein reflected.

Chaos exists in the centre of such things, it is one of the intimate god-machine-methods, an active and inactive confusion: a cold passion that lies more or less in waiting.

But who ever dreams of a perfect and intact order?

Whether or not to count upon Utopias: a mere question of tactics.

And what is Homeostetics? An absurd question filled with taxis, caviar, pocketbooks and arsenic...

Making all gestures flow towards a Immediate-Unique-One, or build a light/heavy weight manufacturer-god, an artisanal god or a plurality of gods, sacred and implacable, making god and his cathedral flows towards the manufacture: may the mountains move to visit the prophets!

Everything begins in the orifices.

First the festive ritual of catharsis: to bite, to yelp, to contain, to involve; followed by ceasing involvement.
This is achieved paradoxically. With the fingernails filled with black and white humour, in a maximalist-minimalist act and vice-versa: in this case, we are left perplexed by the scale because it is filled with incoming and outgoing flows, inside-outside in movement.

Regression and progress in humanity, in infancy: wallowing in the fraternity with revolutionary crimes; but the project is always the same – to reveal the New City.

In this manner the powers-that-be reveal themselves as un-revealable, in luxurious intimacies and exaggerated pantomimes, without frenetic sentimentalisms and in nostalgic memories of opiates, with binoculars focused on the beyond.
The uniform makes the soldier, but the label only completes the homeostetic.

The Homeostetic is a wise and absolute creature, conscious of his genius. The roads of his excess lead him to the palace of wisdom. The limit between the dragged and the dragger (magnetic fact) is the infinite-here.
Revolution, politics, regressivity, solidarity and the individualis me, they love us profoundly:
oh to be a hero, crazy, cursed or Beautiful!


Pedro Proença, 1983
in a pamphlet for the “Homeostetics” exhibition, ESBAL Exhibition Hall, May 26 to June 9, 1983

KNOSSOS


Knossos é uma «história» de M. Vieira, modelo crú, romantico, desconcertante da prosa romanesca homeostética.



I

Onde o autor fala do sistema político de Knossos

“Toma, minha grande vaca, toma! Toma!!” – Kassanor, último rei de Knossos, resfolega, sua, chicoteia a pobre rapariga nua, possesso por uma onda de luxúria cega. Dois dos seus sequazes utilizam tenazes, vibradores, alicates, rodas de oleiro, serrotes, alfinetes, tudo o que há à mão.
O rei grita de alegria sádica. Três vultos, na mesma sala, assistem a tudo. O palácio de cores quentes cai aos bocados, corpos nus e sujos de vinho, comida e sexo espalham-se pelas suas salas imóveis, ressacando. Só a grande sala está agitada…
Hoje é o último dia da semana de debocheorgiasbacanais, na qual tudo é permitido ao rei. Hoje, ele tem que aproveitar ao máximo, pois é o último dia do seu reinado. O céu vermelho parece devorar a cidade e corvos vão e vêm sem cessar. A multidão agitada aguarda fora do palácio, enquanto algumas raparigas virgens são sacrificadas ao deus baal (verificar grafia; maiúscula?), formando fogueiras por toda a cidade. Algumas pessoas morrem sufocadas pelo fumo. A frota aqueia está próxima. (os aqueus, bárbaros vindos do Norte pretendem invadir a decadente e corrupta cidade de Knossos.)

O rei continua a resfolegar. Os seus olhos brilham como berlindes. Enfiou a sua picha no cu quente de Gabriela e atinge o clímax. Os seus movimentos são brutais e Gabriela, que sangra por todo o lado, solta gritos de dor. Quando o rei, por estes excitado, atinge o orgasmo, o sumo-sacerdote sai da escuridão e estrangula-o com o garrote.
A tempestade acalma de repente…
Os sacerdotes abandonam o corpo do rei aos corvos, que, depois de o devorarem em segundos, deixam a cidade.
Os sacerdotes saem do palácio. “O rei morreu, dizem ao povo”.

Ah! O sol nasce das nuvens!
Uma chuva de flores cai sobre a cidade. Por toda a parte se? dança alegremente. As mulheres jovens enganam os seus maridos velhos e prestam-se festas em honra da vida, da juventude, da primavera, da beleza. Grupos cantantes passeiam pela cidade regenerada, ao som de liras e flautas. O povo traz o seu novo rei pelas mãos. É jovem e belo. Governará mais quatro anos, por mais um ciclo.

Fim da primeira parte *

* Este documento foi-nos gentilmente cedido pelo museu da Acrópole de Atenas e foi escrito pelo poeta do séc. (?) KANNADASSUKAK, O DEMENTE, em “A política na nossa era”.



II

Diálogo sobre o poder

Gabriela sentara-se debaixo de uma oliveira nos campos perto da cidade. O céu estava azul e o sol banhava-lhe o rosto. Repousava. O cantar dos pássaros ecoava pela tarde e o cheiro da terra e das ervas misturava-se com o do seu sexo, quando, de longe, surgiu uma bela vaca, na idade madura. Meteu conversa.
Arf! Arf!
Céus! – disse Gabriela. Uma vaca a ladrar?
É verdade. – disse a vaca. Mas posso fazer muito mais. Ainda não viste nada.
Gabriela estava irritada. De repente, tinha-se apercebido de que tinha uma vontade enorme de fazer amor. Mas nunca com uma vaca. Que veio fazer aqui uma vaca?
A vaca falava.
História da vaca:

“Sobre estes campos que vê agora, viveram outrora muitas vacas bonitas como eu. O verde da erva fazia parte da nossa vida e vivíamos despreocupadas, ruminando calmamente. A erva nunca parava de crescer, pois as nossa fezes estrumavam a terra e dela saía muita erva, verde, cheia de proteínas. Um dia, chegaram os cães, vindos da distante Ásia Menor. Aqui, na nossa ilha, plantaram um império. Eram uma raça de guerreiros e comerciantes selvagens. Aproveitando-se da nossa inofensividade, provocada pela nossa vida sem problemas, abusaram de nós, dizimando-nos aos milhares para nos comer, destruindo todo o nosso lírico universo.
Mas algumas das minhas irmãs organizaram-se (clandestinamente, pois na época eram proibidas reuniões de mais de duas vacas) e formaram um exército. Por fim, e, como dizem os americanos, “to make a long story short”, o nosso exército defrontou o dos canídeos na célebre batalha de Manabara. Foi um massacre. Todos os cães morreram e das vacas só restou a minha família, da qual sou a última sobrevivente. Não tenho descendência”.

Gabriela estava aflita. Tinha cada vez mais vontade de fazer amor e não sabia como se livrar da vaca. Queria pelo menos masturbar-se, estava muito húmida, mas como, com aquele bovídeo presente?
“Nada a fazer”, pensava Gabriela, quando, de repente a vaca foi trespassada por uma lança. Diante dela estava uma horda de guerreiros aqueus, que iam conquistar a cidade.
Que sorte! , exclamou a Gabriela. Vêm em muito boa altura .

Fim do II capítulo

Ainda hoje na Liga Aqueia os velhotes contam como a invasão aqueia foi detida por uma só mulher. Consta que nem os 300 guerreiros aqueus foram capazes de satisfazer Gabriela, que correu atrás deles reclamando um pouco mais de calor humano. Os aqueus correram precipitadamente para os seus navios. Os que caíam eram pisados. A confusão foi tal que, à saída da baía, os barcos chocaram, afundando-se, e os aqueus, não querendo voltar a Creta a nado com receio de que Gabriela os esperasse, nadaram em direcção ao seu país, afundando-se todos pelo caminho.

Menos um: Arménio.
Arménio foi parar a uma ilha.

Ali está sob a sombra de uma palmeira.

“Porque fui poupado? Porque não tive a mesma sorte dos meus irmãos? Mas bolas para isso! É primavera. É primaveraaaa!” – gritou agitando os braços. “Estou cheio de amor e tudo é harmonia.”
Saltando e correndo, Arménio foi-se perdendo nos labirintos da floresta. Tropeçou e caiu, perdendo a consciência.
Quando a recobrou, tudo estava azul e sentiu uma sensação de movimento. Abriu uma janela e viu que estava a ser transportado numa liteira por dois hámsteres vestidos de bispos, correndo velozmente pela estrada de tijolos amarelos. Passaram por uma ponte romana, por uma paisagem de esparguete, depois de uma paisagem de maminhas, uma de moedas verdes enormes, uma de autocarros da Carris suspensos no ar, uma de enormes plantas carnívoras, que quase os iam devorando, até que pararam no alto de uma colina, onde havia um castelo enorme em forma de moinho de pimenta. Entrou por uma grande porta e passou por um corredor ladeado por grandes guardas da Carris com cabeças de vacas azuis. No fim de tudo estava o trono do mandarim, um coelho velho e chato, com um olhar muito melancólico e com chifres de vários animais formando uma densa confusão sobre a sua cabeça.
Como todos os mandarins, tinha compridos bigodes pretos que chegavam ao chão. À sua volta, castores agitavam as caudas para que a névoa púrpura que saía constantemente das narinas do mandarim se dissipasse, e bailarinas dançavam nuas sobre pedaços de vidro.
Arménio estava perplexo.
“Que querem de mim?”, disse ele.
O coelho bateu as palmas da mão e toda a gente desapareceu.
Depois falou assim:
“Tenho um grande problema. Se me ajudares, farei de ti um homem rico.”
“Que problema?, disse Arménio com inocência.
“A minha mulher encorna-me”, disse o mandarim.
“Mas como posso eu ajudar-te?”
“Só tu, um estrangeiro, me podes ajudar. Agora ouve bem: a minha mulher está lá em cima” – e apontou para a densa massa de cornos sobre a sua cabeça –, “chegada a noite trepas pelos meus cornos. Depois penetras no seu quarto e vês com quem ela dorme. Depois vens, e avisas-me.”



Chegada a noite, e depois de um bom banquete, Arménio subiu pelos cornos do rei acima. Depressa percebeu que eles formavam uma floresta. De cada árvore da floresta brotava o sexo de um animal.
Chegou a uma clareira com uma casinha de madeira no meio, a porta estava aberta e ninguém em casa. Viu que a casa era composta unicamente por um quarto, no qual uma grande cama, cheia de almofadas, cetins de todas as cores, ligas, cuecas e meias de mulher, ocupava a maior parte. A parede era encarnada e tinha nus do século XVIII na parede. Havia também uma janela.
De repente, Arménio ouviu um ruído e escondeu-se debaixo da cama. Aproximava-se uma mulher muito bem feita e bela, como todas as mulheres destas histórias de cornudos. Seguia-a um esquilo.
Debaixo da cama, Arménio sentia-se muito mal. Viu o esquilo ir embora depois de saciado. A seguir veio o peru, depois deste saciado, um cavalo. E por aí adiante.
Toda a noite se sucederam estas visitas animalescas. Por fim, a mulher infiel disse: “Bom, parece que por hoje acabou.”
A partir daí começou a dormir.
Arménio sentiu-se invadido por um grande tesão. Pouco a pouco, foi fazendo um buraco na cama. Depois, foi começando a sentir as carnes tenras da devassa. Lentamente, penetrou dentro da sua rata.
“Ah!” – pensou Arménio – “A maldita nem notou!” Começou a fazer os movimentos com maior vigor. Como esta não notasse, enfiou lá a perna. Depois o braço e por aí adiante.
Arménio descobriu então que o maior problema do rei era não poder trepar pelos seus próprios cornos.
Então, enquanto a mulher dormia, meteu as pernas de fora e começou a caminhar.
Passou pela floresta e desceu os cornos até ao rei.
O rei, ao ver a sua mulher caída do céu, exclamou: “Desmodina! Meu amor! Voltaste!”.
A mulher não compreendeu como ali tinha ido parar. Então, Arménio saiu de dentro da ciclópica vulva, envolvida em molho.
O rei, ao ver tal coisa exclamou:
“Que é isto?”.
A mulher, atónita, não compreendia.
Arménio, sentindo-se em perigo, disse: “PAPÁ! MAMÃ!”.
O rei soltou então um sorriso:
“Um filho! É o meu filho! O nosso filho! E que bonito que ele é! Mas… espera… é igualzinho ao homem que mandei espiar-te! Até ele tu seduziste! MALDITA!”
O mandarim sentiu o desgosto invadir-lhe o coração.
Cambaleando, com os olhos muito abertos, avançou pelo corredor.
Desceu escadas. Tropeçava mas levantava-se outra vez, cego na sua dor, só pensava em vingar-se do universo. Sim! Não foi só culpa da mulher! Todo o universo o atraiçoou! Errou por corredores e catacumbas só por ele conhecidos até chegar a uma sala repleta de computadores, botões e luzes de várias cores que acendem e apagam. No meio da sala estava uma alavanca, o coelho agarrou na alavanca e a suar, disse:
“Vou desencadear uma grande explosão!”.
No instante em que ele ia fazer isso ocorreu um milagre, atribuído hoje a Santa Eulália ou a Santo António de Pádua, que consistiu num grande nevão que caiu sobre o castelo de pimenta ficando este soterrado e destruindo todos os seus habitantes. Foi mesmo uma sorte.

Fim do II capítulo



Entretanto, numa longínqua aldeia do Nepal, três raparigas dançam danças indígenas. Um sujeito de calças gordas fotografa.
Fotografar, fotografar sempre. Registar a todo o momento. O olho da máquina não se cansa. Fotografar. Fotografar para esquecer que a Aninhas o trocou por um bom pianista de jazz. Fotografava freneticamente quando surgiram 2 grandes cavaleiros mongóis.
Foi violentado e humilhado, além de espancado. Como tinha ele ido parar àquele canto obscuro do planeta? Esquecer, esquecer a Aninhas… Meu Deus… Com um pianista de jazz… porque não com um tocador de batuque africano num ambiente de castanhos-escuros ao som ritmado do sexo sexo… a Aninhas…
Delirava assim disparatadamente quando reparou que não via de um olho. Era de noite e estranhos seres começaram a surgir da escuridão. Ele estava dorido, cego de um olho e totalmente inseguro.
Não tinha a sua máquina. Tinham roubado a sua máquina!
Apareceu uma fada montada em cima de um vendedor de apólices de seguros relinchante. Montou também com ela. O vendedor galopava a toda a velocidade. A fada falava.
“Sibili Sibilim, há três anos que galopo e ainda não vi ninguém como tu. Como te chamas?”
“Gaspar. Gaspar Ledeboche e tu és uma fada linda sibili sibilum, sim, és linda e estou-me nas tintas para a Aninhas mais o seu tocador de piano, e para o mundo dito normal e amo-te e galopo a toda a velocidade e o vento bate-me na cara, respiro o ar frio e húmido e puro da floresta às 6 da manhã, as folhas batem-me na cara, as minhas mãos acariciam os teus seios, deixemos este infeliz, não temos o direito de montar em ninguém, mesmo num vendedor de apólices de seguros, quem sabe se um dia ele não se tornará uma borboleta, como nós, tantos pássaros, uma flauta de madeira que ecoa pelos bosques, que respira, que é um pulmão generoso.
Como sabe bem beber tudo isto… sim, sim sibilim sibilum, aconcheguemo-nos, é de manhã e está frio, os teus cabelos claros no meu peito sibilum dundadarum
Viva o júbilo que provém do conhecimento da natureza que habita em nós.”
O sol está mais quente agora. Gaspar e a fada avançam em direcção ao horizonte, no qual está uma estalagem.
Dois homens comem de olhos esbugalhados trocam-se olhares vorazes e devoradores. Tudo é devorado, os bocados de comida que caem pelos cantos da boca logo são apanhados, num frenesim de egoísmo armazenamental. Come, come. Leva a mão à boca, cava a comida como areia, o teu cérebro fica areia.



INTERMÉDIO EXPLICATIVO
Tudo isto não passou de um pequeno desvio. Mas voltemos a Creta e à nossa heroína Gabriela.

CAPÍTULO IV

Na estação de serviço Mobil, três guardas da Polícia Militar passeiam pelo jardim que está perto, com um ar sério. Surgem das árvores orangotangos que lhes atiram com carris de metro. Um velhote atira milho a pombos com capacete nazi. No lago, a proa de um Boeing 477 emerge, dando abrigo aos cisnes.
O guarda da estação de serviço já não possui gasolina há muito tempo, criou raízes na terra, saem-lhe arbustos das costas e folhas do nariz. É verde.
Os caixotes de lixo municipais soltaram-se dos postes e tentam abocanhar os transeuntes incautos. É tarde. Está muito calor, só se está bem no jardim, à sombra de um carvalho centenário”, pensa Gabriela. Knossos brilha ao sol.
Enquanto uns fazem a sesta, outros filosofam:
– “És um velho imbecil, Heraklion! És um recalcado, um egomaníaco depressivo, a tua sisudez é feita de sacrifícios estéreis, és estéril, chato, saem-te arbustos das costas, e folhas do nariz. Além disso, és verde. Estás cada vez mais vegetal e as tuas teorias criam caruncho. Hão-de apodrecer ao sol brilhante de uma nova era em que as borboletas voem sem cinto de segurança.”
– “Podes falar, eucalipto, mas não podes negar que a tua aparente volúpia é feita de tijolos de concreto. És desleal, pois eu fui o teu mestre e um bom pupilo, não se revolta contra o seu professor. Sou bem mais douto do que tu. Rio-me das tuas transmutações alquímicas, que só consegues excitar as mentes de uns escassos mentecaptos de luxo, que não tiveram suficiente carinho na infância. É verdade que sou verde mas tu és castanho e, como eu, estás pegado ao chão por bifurcadas raízes. Do teu cabelo, que parece um emaranhado de lentilhas, surgem setas de várias cores, mas cada um aponta para um lado. És feio, Eucalipto.”
Nisto surge Gabriela. Ouvindo a discussão começa a despir-se.
– “Que é isto?!” – dizem os filósofos em uníssono.
Gabriela brinca com os seus opulentos seios e exibe escandalosamente o seu entre as pernas.
– “Raios!” – diz Heraklion– “Tenho de fazer qualquer coisa!”
– “Mas o quê?” – diz Eucalipto – “Estamos presos pelas raízes da nossa própria sabedoria.”
– “Porque é uma sabedoria cretina.” – diz Gabriela – “Apesar de todo o vosso saber, não podem sair daí e vir cumprir o vosso papel natural.”
– “Bolas, Heraklion! Arranquemos estas raízes que nos prendem!”
– “Impossível, meu colega. Estamos deveras presos.”
O coro: – “Amo esta mulher. O seu corpo de curvas subtis esvoaça com leveza e o seu cabelo tem ondas como o mar. Navego. Navego no seu olhar de uma luz infinita e sinto cada vez mais perto a eclosão do caos. As suas apetecíveis coxas brilham ao sol e reflectem o meu rosto deleitado de tanto respirar e cheirar essa mulher.
Sereno, defronto o perigo de cair da minha linha de equilibrista brista Brígida era uma bela moça do campo Brígida, naquele dia apanhei-te pela frente as saias caíram na estrumaria eu vi os teus seios e vi a diferença.
Oremos a Zeus: Ó Zeus! Ave Zeus cheio de subtileza, cantado seja o vosso nome, bem considerada seja hoje como amanhã, como na terra nos deu ontem naveguemos serenos.
Eucaliptdonisilastrophagya.

Mas deixemos KNOSSOS por 1 momento e vejamos:





IVVIIIXX capítulo

Arménio sai debaixo dos escombros e canta uma melodia céltica quando sente que os seus pés não estão assentes em terra.
Voa por arco-íris de subtis variações. Um tapir abre a janela de uma nuvem e deita fora o lixo da casa. Arménio pensa em como gosta de manteiga de amendoim e de tudo o que é verde-alaranjado e em como a vida pode ser divertida se conseguirmos tocar num ser contrário e sentir ecoar em nós um encadeamento de processos que nos põem a voar.

C. & E. (o que vem)






A significação informulada é sempre sexual. (N. O Brown)

A ideia de harmonia, de solução, de eliminação das desordens,
de superação de toda a contradição, do acabamento político é,
como agora sabemos, uma ideia massacrante.
Começamos a ver todo o mal que existe na ideia de boa sociedade,
todo o horror que o mito de felicidade pode impor.
O futuro radioso deve morrer.
Está aberta a via do devir.
(Morin)

What’s the next?






Agora o final. Ou a (des)contenção do final. FAY CE QUE VOULDRAS. Abertura para um próximo. Para um próximo que ainda é nenhum, para o que se quizer.

As nossas oficinas buscam uma academia. Essa academia acolhe-nos numa entrerrecusa ou num transpretexto.

Um nada. Uma liberdade. Um simpósio quase romântico e místico. Ou meteórico, apaixonado e tedioso. Acedemos ao esquecimento. E no esquecimento há a perpetuidade.

A perpetuidade cristaliza-se num zero grávido.

Quem conhecerá os frutos fartos desse zero?

C. & E. (interlúdio)










A insistência, comumente exaltada
de que o progressivo é um lento movimento
de ruptura com os seus pequenos regressismos
com as suas orgânica sistémicas,
não nos obriga às unidades isoladads
mas antes excita as suas mecânicas
de ligação-corte com os exteriores:
novas unidades sistémicas nas quais
como parte se é actor. Mimesis interior
e mimesis exterior: acreditar
numa complexidade-limite não-atingida
e num processo revolucionário em curso.

Somos agora forçados às linguagens
desejantes, e nas linguagens amaremos
as liberdades mais do que possiveis –
explora-las-emos intereligando-as
desfazendo-as, dispersando-as e reunindo-as.










A consciência de um Disperso é ela mesma
factor de Unidade – conjunção maneirista
de contrários, através do riso, da catástrofe,
em òpera disfarsada de opereta –
o tragicamente risível.

A mudança existe para repousar,
é gesto, diluição no híbrido –
e se o esquecimento deforma
também a memória transforma
regenerando e iluminando mundos.

C. & E. (liberdade)


Juri - fazer tudo para não tomar parte em nenhum deles. (Flaubert)

O homem realizar-se-á suprimindo as fronteiras que paralisam
a sua actividade conceptual e que o conduzem a classificar tudo
e reduzir tudo.
(Morin)

Je ne suis pas dans l’espace et dans le temps, je ne pense pas l’espace et le temps. Je suis à l’espace et au temps, mon corps s’applique à eux et les embrasse. Je ne suis pas devant mon corps. Je suis dans mon corps, ou plutôt, je suis mon corps. (Merleau-Ponty)


Uma fruição moral não é necessáriamente uma fruição judicial, e pode ser uma fruição profilática – as exigências estéticas passam por aí.

Marinetti proclamava a guerra como única higiene do mundo – apelo futurista e heraclitiano à catástrofe.

Apocalipses simétricos – toda a decadência é contemporanea da eternidade.

A obra não se explica como um corpo ideal, mas como corpo utópico. Tornar a obra post-apocaliptica e metacatastrófica é dar ao corpo a visibilidade das suas invisibilidades.



Se existem elementos corpusculares constitutivos na obra eles apenas interessam como desejo e alegoria descritiva, como fachada, muro, de uma cosmogonia outra que se inscreve nas células vazias do elemento actuante – o corpo.

O corpo opõe-se ao Corpo. O corpo nárcisico, gestual, performativo, difere do corpo universal, do corpo que é conquistado ao inconsciente.

A liberdade é o espetáculo do não-espetacular.

A organização dos espaços busca na incerteza, na consciência do incerto, nas complexidades alargadas – destalibilização das instabilidades que se equilibram, mutuamente.

Não a economia que simula a imediaticidade espetacular. O minimalismo é o ascetismo de consumo, a evidência pseudo-moral.

A «boa-forma» é uma impostura moral que tenta desviar a evidência do corpo, e a politica como transmutação de corpos. Queremos uma politica transcomunicacional, sexualizada, aceitando o espaço, fazendo desabroxar o envolvimento.

A arte é uma necessidade luxuosa, um reequilibrio feito de desiquilibrios – isso é homeostética.



A história das convenções passadas torna a nossa actualidade mais futurista – é o passado que faz a profilaxia que garante a generosidade do futuro através deste presente.

Escrevemos - «contar ou não contar com as utopias, mera questão de táctica». – e a táctica aqui é contra o cepticismo (a pesar de um salutar cepticismo) através de um dogmatismo metamórfico.

Substituição constante de convenções. Experimentar para desocultar o erro. E mais do que nunca o perpétuo encontro com o desconhecido que se dissimula no conhecido. Nada é suficientemente conhecido. Contra o mêdo!

Não há limites para os universos. Os universos são sempre insuficientes, um work in progress. Avançar. pelo vago, pelo indefenido, desdramatizando os pavores, nascendo para novas necessidades.

C. & E. (gesto)



Une science humaine ne peut être que celle
du sens e du contressens.

Um paradoxo resolve-se quando situamos as duas proposições
antagónicas num sistema de referências enriquecido
onde aparece a sua complementaridade lógica.


(Morin)

Na esfera estética, o impulso mimético afecta antes a mediação,
o conceito, o não-presente. O elemento conceptual, enquanto entremeado, é inalienável na linguagem e também em toda a arte,
e transforma-se assim em algo de qualitativamente outro
em relação aos conceitos enquanto elementos distintivos
de objectos empiricos. A introdução de conceitos não é identica à conceptualidade da arte; a arte não é conceito nem intuição
– eis porque protesta contra a separação.
A arte é intuição de algo não-intuitivo,
é semelhante ao conceito sem conceito.
Nos conceitos, porém, liberta o seu estrato mimético,
inconceptual.

(Adorno)



É a conceptualidade e a inconceptualidade do gesto assim como a consciência ingénua/culta do mesmo, que pode servir como aposta. A exploração do gesto tem sido feita maioritáriamente de uma forma esvaziada de criticismo, ocultando a «conceptualidade» quer do gesto quer do ornamento.

As poucas tentativas consistentes nesse sentido foram levadas a cabo por Henri Michaux –

«ce sale flot noir, qui se vautre, demolissant la page et son horizon, qu’il travesse aveuglment, insupportablement, m’oblige à intervenir.»

«Dans l’ecriture, certains jambages s’elançaient démésurés, faussant le mot, sortant du mot, leur graphie emportée à part par leur èlan propre, et aussi par l’appel pressant à la represantation et à la figuration de ce dont il etait question et dont, maldroites et insuffisantes, perçaient les soudaines, rapides tentations, les ébauches trot tôt interrompues».



Se a presença do Corpo no Gesto nunca foi negada, também ninguém como Michaux teve a necessidade da apresentar como «antropomorfica», «fálica». A ocultação desta evidência foi saudada como progresso, como emancipação. Enquanto isto se passa Michaux é claro:

«Peinture par oubli de soi, de ce qu’on voit e qu’on pourrait voir. Peinture de ce qu’on sait, expression de sa place d’ans le monde.»

Insiste também nos mandalas e na desagregação do ego em alternativa ao seu massacre, como em boa parte nos artistas ditos expressionistas abstractos:

«Le massacre peremptoire, ou delicieux de l’ego et de ces unités construtives, c’est du passé».

A aceitação experimental do mundo, não uma luta infernal contra ele.

Toda a história de arte está imersa em gestos, em ideias-gestos, em programas-gestos, em conceitos-gestos. Não é o gesto a expressão no actual dos inevitáveis equivocos «miméticos»?

Substituição continua de gestos, substituição mimética.

A conceptualização é a convenção, o òbvio, o dizivel.

O inconceptualizável é o que fica.

A realização artistica toca as arestas das regras, regras que se querem não-defenitivas, mas desprobabilizadoras. Regras do não-determinante. Para um improvavel Possivel.

C. & E. (ornamento)


«as lovers will contrast their emotions in times of crises
so am I dealing with my environment»

Nunca deixamos a nossa vida.




Existem dois aspectos que roçam constantemente o conceito corpo e o conceito envolvimento: o gesto e o ornamento. Ambos ora se afastando, ora se aproximando. Se o gesto teve um papel priveligiado dentro do teatro do «modernismo», já o ornamento constitui uma espécie de tábu, por não tocar as àreas da funcionalidade. O ornamento foi esquecido e afastado para longe da civilização do trabalho e da acção, continuamente condenado pelos teóricos e assimilado frequentemente ao kitsch. O aspecto decorativo era encarado pela sua imediaticidade visual, pela sua concorrência para um objectivo, pela sua harmonia formal, pela sua agradabilidade aos olhos. Esqueceu-se a plaisanterie, a brincadeira luxuosa, e, fundamentalmente, a grande presença do envolvimento. A pattern painting constitui uma tentativa frustrada no sentido de fazer reviver tal envolvimento – mais globalizante do que se julga. O ornamento, no entanto, não pode viver uma aventura isolada do corpo, como mera continuidade em relação aos projectos minimais. Não basta escrever figura. Não basta ornamentar – é necessário, através desse acto lúdico, avançar para uma àrea em que um projecto de vivência esteja incluído.

O ornamento revolucionário. O ornamento de uma sociedade futura. O ornamento para o desconhecido.

A arte das sociedades ditas primitivas é prodiga nisso. O ornamento é o sinal da indissolubilidade entre corpo e envolvimento – é do domínio da «relação», da «abertura», da investigação progressiva do espaço. Neste tipo de investigações o ornamento é contraposto à logica da proporção (que implica unidades fechadas, íntimos, duplos, uma lógica ancorada na mortalidade) de que a tradição renascentista viveu e que se encontra em agonia.

A pattern viveu dissociada do envolvimento porque este envolvimento era agressivo. Há que fundar novos envolvimentos – regressar à matriz, utópicamente e romanticamente, viver a aventura de uma nova civilização.

A confusão (a realidade existente) entre efeitos, produção de efeitos e ornamento levou à ruptura com um público, deixando imensas lacunas por preencher. Este é arrastado por medias que o fascinam, mas que não compreende.



Ora o gesto, pai do arabesco, é a reacção irracional a situações de crise: o gesto aproxima pelo agir, correspondendo a uma necessidade afirmativa do sujeito, implantando a sua presença através de marcas ou rastos. O gesto é uma emergência narcísica que visa a liberdade, mesmo que se trate de uma aparente sublimação – expulsão de energias reprimidas com a passagem a um envolvimento maior, na qual a presença do sujeito se vai dilatando: presenca sexual e presença social. A presença politica e a religiosa, filhas da moral e do controle, só vêm mais tarde.

Com a dilatação já não há um imperativo egoísta porque a necessidade de marcação dissolve-se e abre-se na consciência de que tudo devem exterior, chegando a uma humanidade sem «rosto». Esta torna-se numa acção para o envolvimento, numa transformação do mundo.

A permanência do gesto nestas situações é moderada e menos violenta, pois já não serve a esconjuração imediata de espiritos, nem uma transcendência primária, mas é útil para a devir de uma sociedade menos injusta graças à prática de uma desconstrução permanente.

As consequências do alargamento do gesto levam a enfrentar as «grandes escalas». O gesto torna-se um hino planetário: paisagens flutuantes. Pode ser um motor do progresso da mimésis, mas nunca será o único motor desse progresso (o único que verdadeiramente interessa ao homem): torna reconhewcíveis os basic scribbles, desfigura os códigos para os transformar, mas não completa a operação. É um acto, ainda assim, irresponsável, infantil - «les enfants qui naissent ne conaissent rien de la vie, pas même la grandeur». Este ser-se infantil é como a espontaneidade das doutrinas taoístas, uma experiência mais do que um conhecimento, uma intuição desprovida de moral.

Mas, e insisto, é na vontade do gesto (por mais que este crie um ambiente ingénuo, festivo, irresponsável ou até egoísta) que deve radicar o motor de uma sociedade nova, entre o marasmo magnífico, explêndido, do devir louco das convenções.

C. & E. (gato)



Bonito, já vi muitos gatos sem sorriso,
mas um sorriso sem gato é a coisa mais curiosa
que já vi em toda a minha vida!
(L. Carrol)

O que é contraditório num reino de coisas mortas
não o é no reino da vida.
(Morin)



Ruptura! – preludio para o novo.

Turbilhões, movimentos descontinuos, copulações aleatórias, variedade de actos, diversidade de formas.

Chega-se ao problema crucial da multiplicidade e do desenvolvimento. A construção de centros, como necessidade topologica, apela ao establecimento de relações crescentes cada vez mais complexas, fazendo com que os objectos joguem intensas relações, desenvolvendo, caso seja possivel as potencialidades que pre-existiam e as que vão surgindo.

É o princípio da construção do mundo, do reconhecimento do próprio corpo, como cadeias borbulhantes de percepções e construções.

Mais do que a comunicação, como evidência retórica dos materias, mensagens (que incluem piscadelas irónicas e algumas salutares ambiguidades), pense-se antes em transcomunicação, desfrute, diálogo séries entre complexas, modos de produção em que o corpo e o logos estão envolvidos. Não se pretende comunicar algo mas fazer passar redes de possibilidades, como uma discussão que não se fecha nunca. Visão como vontade de participação critica num diálogo a várias vozes.



O processo de representação é uma metodologia global que envolve não só a linguagem como conceitos visuais complexos, que implicam não só um conhecimento conceptual do representado como transporta em si a vontade de exprimir conhecimentos e tradições que transformam, sublimam e divergem do que deveria ser representado.

Avançamos com a proposta do Envolvimento Total Reflexivo, uma operação estética, que ainda que tenha as suas bases em mecanismos perceptivos ou em intenções mais ou menos boas, acaba por dissolvê-las numa inter-perceptividade festiva, e numa abertura menos intensional, como se fosse um balbuciamento de uma miriade de possibilidades.

Respirar – inspirar, conter, expirar – processo de conhecimento circular. Regeneração e progressão na mimesis.

O desenvolvimento da mimesis coincide com a maximisação das capacidades biológicas:

«A descoberta de derivações genéticas (genetic drifts) não selectivas, o reconhecimento de caracteres neutros no seio das espécies, a plausibilidade matemática de que certos traços desfavoráveis poderiam ser conservados no pool genético, tudo isso produziu brechas na aparente racionalidade da selecção. Já não é o optimo que é seleccionado, é o péssimo que é eleminado. Já não é o útil que é sempre conservado, mas, eventualmente, o supérfluo.» (Morin)

O progresso da mimesis (ou da representação artistica) passa também pela reconsideração do supérfluo e o eleminar do péssimo. O importante será (para além da variedade/variação das novas conexões a serem establecidas) detectar as invariantes, isto é, os caracteres neutros.

Os caracteres neutros seram os chamados basic scribles?

C. & E. (fogo)


Fogo – purifica tudo. Ao ouvir-se gritar fogo
deve começar-se por perder a cabeça.
(Flaubert)

Les signes me disent quelque chose. J’en ferai bien, mais un signe est aussi un sinal d’arret. Or en ce temps je garde un autre désir, un pardessus les autres. Je voudrais un continuum. Um continuum comme un murmure, qui ne finit pas, semblable a la vie, quie est ce qui nous continue, plus important que toute qualité. (Michaux)

Pois criado
tendes em mim um novo engenho ardente
. (Camões)


Aqui, no centro da transformação, no fogo/jogo genésico –

«Este mundo, o mesmo para todos, não foi criado nem pelos deuses, nem pelos homensa; é como sempre foi e será, um fogo vivente, com moderação se extinguindo e com moderação se acendendo.» (Herácito)

«Chama de amor vivo» (S. João da Cruz)

O grande sacrilégio, a grande heresia, o roubo do fogo por Prometeu, constitui o mito fundador da humanidade.

O fogo e a maçã – o acesso ao conhecer, o acesso ao transformar.

Quem domina o fogo pode dominar o mundo.

Quem se mete dentro do fogo sem se queimar é da sua mesma substância.

As práticas de magia (no chamanismo em especial) atribuem grande importância ao dominio do fogo: dominar o fogo é dominar-se, é utilizá-lo sem se queimar.

O fogo traduz-se no quente, no cozido, no queimado. As pessoas agrupam-se à sua volta. Ele é centro, unidade de tudo. Dele vem tanto o bem quanto o mal.

O fogo acende os contrários. Lança o homem para a cultura. Separa-o da natureza, e ao fazê-lo o fogo separa-se do fogo.

A descoberta do fogo = pecado original.
Oceanos de chamas. Juízos finais.

Fogo de alquimistas, prima materia: AQUA NOSTRA EST IGNIS.

«La source represente non seulement le cours de la vie, mais aussi sa chaleur, son ardeur, le secret de loa passion don’t les synonimes ont toujours raport au feu» (Jung)

O fogo é o elemento que repõem o continuum, queimando até se extinguir – é engemho ardente, dando fôlego para que o livro se escreva de uma ponta à outra entrega a uma força que lhe dá vida.

C. & E. (comida)


Vamos jogar aos comedores – comer para inverter o tempo.

«este é o meu corpo, tomai e bebei».

Amai-vos uns aos outros = comei-vos uns aos outros.

Amar é comer, oferecer-se em sacrificio.

Interpenetração. Jogo sexual. Mistura de casas.

Comer para renovar o corpo.

Morrer é ser comido para integrar outros corpos.

Comida: sacrifício simbólico. Na pintura: oferecer aos olhos o corpo do próprio artista, do artista rival do demiurgo.

Toda a imagem é para ser devorada/apreciada – pintura lambida, pintura condimentada, receitas pictóricas, pequenos & grandes cozinhados. Fazer boa cozinha com alimentos simples. Carnes tenras. Carnes duras. Carnes frescas. Carnes podres.

Na arte é como na cozinha. Há pratos inexcedíveis. Dentro do género, pois claro.

E o vinho para lá do milagre dos pães. A magnifica embriaguês segundo Khayyam:

O vinho me embriaga. Que se ria
o sufi santo de tão louca orgia.
Talvez se forje em vil metal a chave
da porta que ele uivou e não se abria
.

Representar é amar e dar-se a comer.

E aqui não há sentimentalismos nem boas ou más visões - «da sugestão à digestão, do centro à periferia, o neo-canibalismo converte e inicia»

C. & E. (casa)


No passo seguinte Alice estava no outro lado do espelho e, dando um pequeno salto, desceu para a Casa-Espelho. (L. Carrol)




Ir ao outro lado do espelho é mais que uma simetria, ou técné – é passar da dimensão aparente do corpo à sua essência, é ser conduzido ao interior onde toda a lógica se desfaz ante o entrevisto que se torna evidente.

Paródia significa união de posições opostas inconciliáveis. A discords concordia é a forma de estruturar e formalizar tal situação. Paródia significa não só que se nega o que já se havia afirmado, mas que o principio de verdade tem duas faces, e a realidade dois extractos. Se se quizer ser vero e fiel à realidade há que evitar a todo o custo a simplificação e apreender as coisas na sua complexidade.

«O pensamento está intimamente misturado com a descrição: se pinto orelhas penso no ruído, se pinto lábios penso na palavra, pintando os dentes penso nos alimentos.» (Picasso)


Achas que gostarias de viver
na Casa-Espelho, Kitty?
(L. Carrol)

Uma casa feita com ramos de pinheiro?
O olho com sobrancelha
.
(enigma azeteca)




Casa-Espelho – o interior como espelho do exterior. O saber aceitar plenamente os objectos. Todos os objectos são iguais, irmãos. Fim das tiranias do Ego. Livre circulação interior/exterior.

Qual o estado juridico de tal situação transfronteiriça? Contrabando? Ou supressão do sistema alfandegário?

Que os objectos não sejam afins de juízos. Apenas valerá o silêncio como legitimização das incertezas ou como critica de uma incerteza e os correspondentes cepticismos.

A eticidade aceitável é a da elucidação dos laços e da sua activação através vivência erótica dos nucleos conceptuais das incertezas.

«A mentira que diz a verdade» ilustra bem este tipo de nexos e de frontalidade. Contra a ética que não sabe senão julgar, há a ética da produtividade, a ética como actividade po-ética.



Casa-Espelho: espaço de indeterminações, de flutuações. Concavo-cônvexo. Labirinto. Mundo dos Possiveis. Possibilidade de vários mundos como em Giordano Bruno.

Casa-Espelho: olhamos com o nosso olhar virado-para-o-exterior: dizemos fronteira. A epiderme do Outro, do Duplo, avança.

Os 3 duplos do representador:

1. a sombra
2. o mundo
3. a obra

Memória. Consciência. Possibilidade.

Fenomenologia do alfandegário – adivinhar os Duplos.

Tirésias não Vê porque transcendeu o dominio do visível, o dominio do olho, do Ego, da identidade.

Tirésias é o antecessor do seu antepassado mítico Homero.

Tirésias vê o passado/presente/futuro. Homero só consegue olhar para o passado – unifica-o e dá-lhe sentido. Ao reencontrar esse passado faz-nos cada vez mais antigos.

Fronteira – consciência do finito. Onde o tacto toca. Saber encontrar o fim. Nitidez.

A dissolução do tacto no tocado e do tocado no tacto: o íntimo tocado.

Encontrar o fim desde o princípio – desestudar, desaprender. Estas são as permissas duma arte que tem como percusoras as «antropofagias» do Herberto Helder:

«Agora ocupamo-nos nos apocalipses, e principia a perversa alegria de escrever mal, o gosto de coçar (...). Não é bem saír do silêncio, encontrar-se a «escrever», não é bem o desejo de mau gosto e desorganização. Será já um pouco «outro lado»?Também não se vai tornar «novo», evidentemente. Mas, de qualq uer modo fez-se um percurso que cabia fazer. Chama-se apenas a atenção para uma certa festividade destrutiva. Abunda em tudo isso alguma alegria antropofágica.»



E depois está tão explícito esse «outro lado» impossível e inimaginável - a autoridade canibalistica de atravessar espelhos, do desfazer festivamente, do afastar o luto, o «nojo», a repugnância pelo já instituído: rito de passagem ou sucessão de ritos de passagem.

A Morte Imaginada do Pai-Analítico.

A perplexidade é sempre a mesma – das auto implicações-afirmações-negações da(s) teologia(s) negativa(s) aos pontos cruciais das ciências analíticas (cosmologias negativas?).

Dilaceração do Negativo : ser o ser-e-não-ser.

Representação que para ser se representa e não representa – o teatro bruto-sagrado de Peter Brook com a presença do visivel/invisivel. Teatro para todos, para as massas. Teatro da consciencia a trabalhar com a inconsciencia.

Atravessamos as Casas-Espelho e começamos a desaparecer, a comermo-nos uns aos outros.

C. & E. (o novo)


Pudemos crer que a consciência humana era a sede do sujeito.
De facto, a consciência humana, que produz a ideia de sujeito, é actualmente a forma última, não a primeira, do sujeito.
Mesmo no homem a qualidade do sujeito não começa por estar ligada à consciência. É anterior a toda a consciência, a todo o psiquismo cerebral, inerente ao ser total e, por isso mesmo, inseparável do corpo
. (Morin)

O novo é uma mancha cega e vazia como o Isso. (Adorno)


Encarar o Novo como director, como cabeça, como Capital. Reduzir o Novo a «revivalismo» é fácil. A transposição de uma atitude antiga para uma época diferente acaba por ser uma transformação e adquire significados diferentes que não passam necessáriamente pelas malhas do mau-gosto (embora, como em tudo, isso possa acontecer). Se o revival se reduzisse a kitsch o renascimento não teria passado de um revivalismo mal informado da arte greco-romana adaptado a novos mediuns, a novas geografias, a novas políticas.

Se invertermos a ordem paternalista do tempo e considerarmos o Novo sob um ponto de vista fraterno, precedendo o «revivido» teremos uma dimensão mais exacta das coisas: é que o «revivido» serviu afinal para alguma coisa – os genes dos antepassados estão em boa parte presentes nos dos descendentes, as potêncialidades dos pais são actualizadas nos actos dos filhos. O novo é a atitude que entre eles marca a diferênça.

O Novo é primeiro que o Velho.

As duas cabeças: a hierarquica (gestos mínimos) e a contestatária (transgressora). No meio vislumbram-se cabeça sexuais, superinformações, texturas não padronisadas, esboços descritivos.

O Novo é o Zero – o horror e fascínio do Zero, o aqui-infinito.



«O primeiro passo na Novidade foi o homem ter visto que existia o Caos. O segundo passo foi ter aberto o caminho para opor-se ao Caos.» (Almada)

Olhar o horror, o Caos, o excremento. Refazer a partir desse zero. O Caos anterior a qualquer coisa. O caos origem de todas as coisas torna-se necessáriamente origem do Novo.

«A permanência da Origem é a garantia para que possa cada idade tomar confiadamente a sua vez de criação sem se medir pelas outras». (Almada)

O Caos é o Não-Ser, o Isso, e, nas suas metáforas mais correntes, o Nirvana, o Eterno, o Inconsciente.

«Je finis par trouver sacré le desordre de mon esprit» (Rimbaud)

«Para fazer o novo é preciso regressarmos há humanidade na infância» (Gauguin) – romper os circulos neuróticos.

O horror do novo – o novo é frequentemente classificado de monstruosidade ou de degenerescência – é o sexual, o contestatário. O Velho seria a Ordem establecida ou a decadência. A predesposição para apropriação do novo exige novos métodos: dialética entre a potência e o acto que a reduz.

Revisitar os antepassados míticos ou malditos = masturbação retórica.

A masturbação retórica abre-nos ao Novo, deitando fora o Velho porque compreendido, absorvido, digerido.

Depois do espelho e da máscara: a Beleza, o Vazio – e já estamos do outro lado do espelho e da máscara.

domingo, 12 de agosto de 2007

C. & E. (representação)


Este é o meu corpo.
Erro, ou magia, ou loucura
ou brincadeira de criança.



As soon it is generally understood that an image need not to exist in its own right, that it may refer to something outside itself and therefore be the record of a visual experience than the creation of a substitute.
The conceptual image might be identified with what we have called the minimum image – that minimum, that is, wich will make it fit into a psychological look.


Gombrich


A prática de representação tem girado constantemente numa operação de reconhecimento. Insisto como Morin no Re-. Re-conhecimento. Não se trata de uma re-visitação, uma nova visitação, mas num conhecer de novo, um «Começar», como no grande painel de Almada. Talvez um «a fingir que nunca se conheceu». Uma brincadeira.

Reconhecer é identificar: a operação parte do idêntico: dar individualidade e igualar. Ligar. Representar é ligar, unir, pôr um representante. A obra será assim o representante da representação. O representado é a experiência visual da representação. Ou corporal.

A obra plástica reenvia constantemente para a relação perceptiva que lhe deu vida, para a «maneira» de perceber do artista.



A «imagem mínima» é a representante de uma imagem pré-existente: o cavalo de pau representa um cavalo na sua totalidade. O que fica omitido nos sinais mínimos da representação é de ordem descritiva, porque o conceito «cavalo» como um todo está presente, ainda que invisível, e é revivido pelo «cavaleiro» através de toda uma «mimesis».

A situação é ainda mais complexa: o conceito «cavalo» adquire um poder – possui ou é possuído pelo representador, como um espirito nas práticas xamânicas. A aparência de algo auto-lúdico, de um fazer sem interesses utilitários, mesmo sem intençõrs auto-cognitivas ou regenerativas arrastam-nos outra vez para a ideia de «poesis» como passagemm do não-ser (desordem) para o sêr – o espaço conceptual que envolve o cavalo de pau é um espaço cheio de energias. Os sinais de representação tornam-se símbolos.

A imagem mínima, ou representação simbólica, corresponde aos gestos mínimos. Existe uma economia de meios que se identifica a um património máximo. Ela levanta toda uma memória e põe-na em movimento. Não recria um passado nem antepassado mítico, mas apropria-se de uma imagem anterior e dá-lhe movimento.

Passa-se de seguida a gestos cada vez mais mínimos: deixa-se de reconhecer uma caixa em que se empilham memórias, totémicas, a-totémicas, políticas, etc, para se entrar no mundo da relação plena em que a ambiguidade dois sinais mínimos constrói relações espacio-temporais que sendo de âmbito universal adquirem funções totalmente distintas de acordo com o meio e o tempo. São, como Orfeu, elementos unificadores. Mas o tempo tem neles uma importancia frequentemente menosprezada. Os arquétipos visuais persistem nas possibilidades perceptivas vulgares e menos vulgares. Os sinais mínimos agem sobre ambas as possibilidades como foco estruturador.



Ao gesto mínimo corresponde uma atitude máxima.
A minimal e a conceptual art esforçaram-se por provar isto e levar esta atitude até às últimas consequências.

Mas para lá deste levantamento exaustivo, o que é importante é a ideia de POESIS porque sem ela não há proprgresso para a MIMESIS.

Mesmo partindo da suposição de que vivemos num universo fechado que se autoconhece o paradoxo de Zenão continua a ser válido – nunca saímos do mesmo sítio: AQUI-INFINITO. Ou: entre dois momentos descontinuos existe um momento continuo.

A multiplicidade dos pontos de vista vai-se fazendo consciente. Entre a informação (que é descontinua) e o conhecimento (que é concentrativo) existem sempre transições inconscientes.
O Desconhecido existe sempre quer nos alicerces, quer para lá dos alicerces do conhecimento.

Este deve ser um dos pressupostos da representação. Os gestos mínimos são elipticos, mas as referências elididas são sobredescritivas.

Só o acto mental pode viabilizar uma não-tirania dos sinais hipermínimos sobre os mínimos, e dos mínimos sobre os descritivos.

Há que evitar uma hierarquia fixa de sinais.

C. & A. (actor)


Morre-se de vêr a nossa cara no nosso espelho: a gárgula a arrancar-se à biografia do corpo e trazendo na hipérbole do horror o nosso sangue, o sexo, os pulmões, as tripas, o coração;
ligando a noite ao dia, o oculto ao revelado, o pressentimento ao acontecimento,
- tudo no mundo, na história.

(herberto hélder)



A imagem que vem é revelação, apocalipse, catástrofe, julgamento. Se a Unidade é máscara ela procura estilhaçar-se violentamente para regressar à violência genésica.

Hoje a representação sente-se atraída pelo vácuo ou pelo horror ao vácuo. Queima-se no mostrar algo sintético e brutal que não se compreende.

Regressemos ao actor. Ao actor depois do espelho. Actor que é «o talento da transformação» (Herberto). O actor situa o espaço, o palco. Exibe-se nessa unidade reduzida. O seu exibicionismo transforma a exiguidade do espaço num espaço fabuloso. O actor domestica as expectativas dos espectadores.

É Orfeu unificando pela música. É a proletarização do espectador. O espectador é uma massa. É o povo unido na não-intencionalidade. É a massificação como hipnotismo.



A diversificação e o progresso da mimesis sabem à partida que é impossivel igualar a realidade. Contrapõem-lhe um Outro, um seu rival, um Duplo. A arte passa a rivalizar e a servir simultaneamente Deus. È filha de um tempo profano, de um tempo excluído.

«Há dois impulsos que duas formas procuram apresentar e representar:
a) Levar a linguagem à carnificina, liquidar-lhe as referências à realidade, acabar com ela - e repor então o silêncio.
b) Fingir escolarmente que não aconteceu nada - e escrever poemas cheios de honestidades várias e pequenas digitações gramaticais com piscadelas de olho ao real quatidiano. » (Herberto Hélder)


A obra é uma sombra, produzida, ou reproduzida, para perpétuar a singularidade de algo que vai morrer, que se vai ausentar do espaço definitivamente. A obra é o medo e o espelho das metamorfoses. A obra é a retracção da entropia, negação do que não pode ser negado.

C. & E. (unidade)


Quando digo Eu não me refiro apenas a mim,
mas a todo aquele que couber dentro do jeito
em que está empregado o verbo na primeira pessoa.

Almada

Não é estranho que não possamos compreender a unidade
escondida da bondade e da crueldade?
Morin

Já o estatuto conceptual de todo o indivíduo físico é ambiguo, incerto.
o individuo vivo comporta uma incerteza própria.
é simultaneamente produto e produtor, gerado e gerador
da auto-geno-feno-eco-re-organização.
Aparece-nos simultaneamente como emergência e principio paradigma.
É uno, singular, único e ao mesmo tempo sincrético (sugcrasis: mistura),
cambiado/cambiante entre genos e fenon, autos e oikos.
É simultaneamente subjugado e autónomo, subjugado nesta e por esta
autonomia (onde se exerce o determinismo genético e o determinismo ecológico),
autonomo nesta e por esta subjugação.

Morin

O Todo é mais e menos que a soma das partes.

Morin




Chegamos à grande envolvência, a uma célula habiotacional onde o espaço se curva e descurva sobre si mesmo para repousar nas suas próprias contradicções. «Os mitos, as grandes narrativas, explicam determinados estados humanos, apenas local e limitadamente. Não inventam, porque nãqo inventam o desconhecido: a verdadeira diferença surge sempre de for a das regras do sistema.» (Ernesto de Sousa)

Fabricar a Unidade é inventar o desconhecido. A Unidade enquanto facto não existe. «Nada é inteiro, tudo é Disperso» dizia Pessoa. A Natureza é Diáspora. Descobrir a Unidade é adoptar «um ponto fixo para julgar» (Lautreamon). «Dá-me um ponto fixo e moverei o mundo», dizia Arquimedes. A unidade fica dependente do não-ente, do não-expresso: «a totalidade é a não-verdade» (Adorno).

A Unidade é uma ficção, uma fábula. Tem um poder mágico que é indispensável. É a tendência centripta: Eros. Possuir Eros ou deixar-se possuir por ele, eis a questão! A Unidade é o direito à habitação, à casa, ao templo, ao repouso, à veneração, à contemplação. Unir é inventar o dia-claro. O dia-claro une-se à noite-obscura. Os galos, como no provérbio zen, cantam ao meio-dia.

«O centro e os mandalas dizem respeito a uma fenomenologia do redondo, do ninho… do ventre materno, também da casa, do quadrtado e de todos os elementos construtivos que fabricam espaços protegidos. Mas tudo entra em contradicção não evidente, por uma clivagem de método, não só com a realidade (que não tem centro, morte de Deus, decadência da familia burguesa) como com o seu entendimento» . (Ernesto de Sousa)

A Unidade é algo técnico: permite que nela se alicercem as técnicas do extase, quando o extase é precisamente o que sobra à Unidade.



«O uno, a sabedoria, quer e não quer ser invocado pelo nome de Zeus» (Heráclito), no entanto «A lei continua a ser a de obedecer aos projectos do uno.» (idem). Ou de desobedecer fingindo obedecer.

Unir para transformar. Transformar para unir. «Movendo-se descansa (o fogo etéreo do corpo humano)» ( Heráclito). Transformar a representação. Representar a transformação. Representar o repouso. Repousar representando. Ser o actor da transformação. Orfeu. O ACTOR QUE ACENDE A BÔCA! (Herberto Helder)

C. & E.(natureza)


«Esta é a mãe animal
caçada na floresta mitológica,
a besta aluada sobre as redes
e as flechas;
paisagem que eu crio fora
com o meu movimento,
beleza acerba de um rosto
já sem fronteiras.»

Herberto Hélder

«Mater semper certa, pater incertus». A natureza é constância (apesar das erupções vulcânicas e dos tremores de terra). Nela viemos à luz e a ela regressaremos. O objectivo da fraternidade é compreender esta mãe para que possa organizar uma sociedade futura. A compreensão de algo permanente, não-agitado, do que dá origem.

A tentativa de compreensão é fraternal (e fracticída) e egoísta: é Cain que mata Abel; Caín, o proprietário.

Existe uma dicotomia muito forte. A mãe está presente. Mas é alguém com a qual se está em dívida: deve-se-lhe a vida. Ela envolve-nos. Está presente em cada acto. Procuramos distingui-la de nós mesmos. A consequência é: separação e ângustia. A única maneira de superar essa ângustia e dívida é morrermos: regressar ao seu ventre.

É esse o sentido dos ritos de passagem. Voltar a Ela, unindo o Eu e o Isso: «o meu corpo é o teu corpo, o teu corpo é o meu corpo» (Ernesto de Souza). Supressão que coincide com a supressão da propriedade. Abolição temporária da propriedade. A terra não é de todos nem de ninguém. Todos são a terra: território, geografia, àrvores, rios, pedras. A natureza pertence ao corpo tal como este lhe pertence. Novo nascimento: não existe mais antropomorfismo na natureza nem fisiomorfismo no homem. Ambos se misturam e unem numa representação única, monstruosa. «O grande charme dos bosques e dos prados é a sugestão de que existe uma relação entre o homem e a vegetação. Eu não estou só e iosolado. Eles saúdam-me, e eu também os saúdo.» (Emerson)

Tudo tem um sentido simbólico. A ordem vísivel é substituída por uma invísivel. A relação entre os vários sistemas e os vários grupos cria uma atmosfera mágica de unidade. A ambiguidade dos signos faz cintilá-los. Há nisto algo de extraordinário.

Tudo parece evidente. O passado e o futuro, o tempo da história e o tempo da profecia, tempos do incerto, dão lugar ao tempo presente: «Quem olhou o tempo presente, olhou todas as coisas: as que aconteceram num insondável passado e as que acontecerãi num futuro» (Marco Aurélio).

A representação da natureza, da mãe, é uma relação edipiana, ou é por ela cortada, dilacerada. Sabemos que o corpo da mãe também é o nosso corpo. Representar a mãe sempre foi um programa artístico, desda as Vénus Megalíticas, às Madonas ou à famosa pintura de Courbet.

Paul Klee, referindo-se à representação da natureza dá-nos uma definição clara:

« Ainda há pouco tempo, o estudo da Natureza procurava as imagens de superfície do objecto filtradas pelo ar. Uma arte de visão optica. (…) Por meio do nosso saber, o objecto dilata-se para além da sua aparência e mostra ser mais do que o seu aspecto exterior nos dá a conhecer. As experiêncvias assimrealizadas tornam o Eu capaz de tirar instintivamente cfonclusões sobre o âmago das coisas… Estas experiências ficam, no entanto, aquém dos caminhos que conduzem a uma fusão do objecto e que establecem uma relação de ressonância entre o Eu e o objecto que ultrapassa as bases opticas:

a) O caminho não-òptico com raízes comuns na terra, que a partir de baixo se eleva no Eu para conduzir ao Todo.
b) O caminho não-òptico com raízes cósmicas e que vem de cima»

O artista aspira aqui a uma unidade que pressupõe um terceiro elemento. A esse elemento chamarei acaso. Contrapondo-se ao tempo linear da natureza ele aparece com intervenção histórica num dado instante encarnando a catástrofe como dado natural.




Este mestre Acaso é a rede das estranhas coincidências. Uma maximização da improbabilidade é impressa no Todo criando o sentido que faltava depois da unificação/fusão indivíduo-natureza. Exprime o mistério e o fascínio. É o determinismo hipercomplexo. Nada é explicito. Algo vem de não se sabe onde, fugindo à ordem simbólica.

No seu manifestar-se há o peso da ética organizacional. A cultura da «mão direita» tenta defender-se da desagregação assimilando o menos possível as catástrofes, chamando-lhes Aviso, Mensagem, Revelação, etc. O Medo reprime e reduz o Acaso. Torna-se um incidente histórico, descontínuo, terrível, como o poder impiedoso que institui o sagrado, o proíbido!

O Acaso é o verdadeiro pai de todos nós. As improbabilidades gritantes que somos tornam paradoxal o direito à existencia. O aleatório alcança o seu sentido máximo ao instituir a vida e ao regenerá-la. O aleatóreo é o alimento quer do progresso quer da auto-conservação. Este pai é etéreo e forte como um centro. A aceitação da centralidade, de um ponto de apoio, é o príncipio básico da organização simples, e encontra-se disseminado nos atractores da organização complexa (que pode comportar um número significativo de centros).

O centro é Taboo. Seja ele totém, montanha, àrvore, pedra, escada, etc. Ergue-se para o céu, fálico, erecto. A interdição é consequência da necessidade de preservação. Proibir para manter a identidade. Proibir para conservar.

Ora esta interdição leva a uma ocultação (censura?) do momento fundador. A legitimidade, paradoxal, torna-se inquestionável. O pénis domina invisivel. Fascínio. Fascínio do interdito. Os rituais da «mão esquerda» tornam explícito, demasiado explícito, esse poder. Ritualmente o revelam. Autorizam-no e transgridem-no. O sagrado é a experiencia festiva-revolucionária e não a reverência institucional. O sagrado é a divindade, directamente, e não a intermediaridade das «igrejas».

O poder que o acaso investe é a capacidade de dar expressão a formas de organização mais complexas e completas. A necessidade é apenas o sintoma de que o acaso já se instalou e que quer ser dito, exprimido, consciencializado. É o heroi que se sacrifica em nome dessa conflituosa expressão. À sua aventura não são insensíveis os herois e deuses antigos, que ora estão contra, ora a favor. Dos actos de heroismo depende o seu esquecimento ou a emergência de deuses mais fortes.

É ester poder que torna viável o poder. São estes actos a que podemos chamar saída, Exodo, o caminho no vazio, a experiência nómada. A todo o Génesis se sucede um Êxodo. O deserto é a desabitação, a não-propriedade, a proletarização. A Lei surge como tentativa de regulação dos poderes invisíveis, como substituição dos deuses pela palavra. Logos versus iconofilia. A guerra é recorrente.

O dadaísmo instituíu nas artes ocidentais o Acaso como Método. O ready-made desloca a atenção para a presença insuspeita do presente: «There is no thing as chance. A door may happen to fall shut, but this is not by chance. It is a consciencious expirience of the door, the door, the door.» (Kurt Schwitters).

O acaso é um instrumento pré-existente. Só há que MANIPULÁ-LO! Trabalho a três. O terceiro é o misterioso colaborador. Trabalho de unificação, salada de sagrado e profano. Trabalho de transformação: «São as coisas que não conheceis que mudarão a vossa vida!» (Vostell)

O terceiro ente é não-ente: «se, nas obras de arte, o não-ente pode emergir subitamente, elas não se apossam dele corporalmente com um golpe de magia. O não-ente é-lhes mediatizado a partir de fragmentos do ente, que eles congregam para a apparition. (…) As obras de arte possuem a sua autoridade por obrigarem à reflexão, a partir de onde elas poderiam, enquanto figurasd do ente e incapaz de convocar o não-ente para o existente, tornar-se a sua imagem predominante, ainda mesmo que o não-ente não existisse em si.» (Adorno). Ou como diz Mallarmé: «O essencial duma obra consiste exactamente naquilo que não está expresso»!

Esta capacidade de vislumbrar o não-explicito encontra um eco nas forças que concorrem sob a denominação da Unidade. O Todo não é tanto a consciencia do todo quanto a vontade de incluir e domesticar os restos.

C. & E. (liberdade)



corrio depois de Eva & Adão,
ergue-se do braço da praia até à curva da baía,
traz-nos por uma commodius vicus de recirculação
de novo a Howth Castelo Earredores


James Joyce

Toda a liberdade depende das suas condições
de formação e de desenvolvimento,e,
uma vez emersa, permanece como liberdade retroagindo
sobre as condições de que é serva.


Morin


LIBERDADE. IGUALDADE. FRATERNIDADE. Este é o programa revolucionário, o único plano de ruptura efectivo: e como ruptura que é, é anti-kitsch. Formas novas, relações novas, comunicação nova. A fraternidade funciona aqui como segredo e conspiração: o objectivo é a tomada do poder, ou a abolição do mesmo. O que une os irmãos é uma ideologia, uma metodologia, uma técnica: «O melhor sentido de técnico que encontramos foi o seguinte: secreto, pessoal» (Almada).

«A tomada de consciência da anterioridade cronológica, ontológica, organizacional, do fraternalismo sobre o paternalismo constitui um progresso que não é únicamente teórico. Traz-nos uma mensagem política. A sagrada família biológica mostra-nos que o príncipio do irmão precede o príncipio da mãe, que precede o príncipio do pai, contrariamente ao paradigma reaccionário que hiertarquiza de modfo dito natural paternidade/maternidade/fraternidade.» (Morin)

Fecha-se um primeiro circulo e nele contido ressurge o fantasma da liberdade. A liberdade é aquela que satisfaz todos os desejos, e por isso é aquela que em si não alimenta nenhum desejo: satisfazer os desejos é transformar o mundo, transformar as linguagens, actuar sobre tudo e todos. Como oferenda. Como presente. Não de um modo repressivo. Dar. Dar-se.

Organizar o mundo a partir do zero: «se há um principio organizador, ele nasce de encontros aleatórios, na copulação da desordem e da ordem, pela e na catástrofe, isto é, na modificação da forma.» A catástrofe tem dois sentidos; um de revogação, de retroacção, de irreversibilidade (embora a retroacção seja um movimento contrariante dentro do sentido do movimento); e um outro, de actualização genésica, revivendo a criação do universo, o seu príncipio-fim.

The fall:
(bababadalgharagharakamminarronnkonnbronntonerronntuonnthunntrovarrhounawnskawnskawntoohoordenthurnuk!). A queda de Adão e de Babel ( e o regresso ao Éden e à condição de culpa feliz do status babélico), a morte do pai (e a sua ressurreição fraterna!).

Tendo em conta o projecto libertário (dar-se!) é forçoso evitar os erros que esse sacrifício possa ter: os erros de sentido e os erros de não-sentido. E convém ser o mais possível consciente do que se exprime. A consciência do que se exprime inclui na expressão as ambiguidades que desenvolve cada um a que se oferece desse um o caminho, desencadeando assim o seu segredo, o pessoal. Poder-se-á chamar catharsis? Será que desencadeia a consciência do próprio corpo? Consciencializar o seu corpo é conscencializar todos os corpos. O enigma de cada é o enigma do Todo, porque as partes são morfológicamente muito semelhantes ao Todo.

Existe aqui uma grande solidariedade e uma grande dessolidariedade. São as àguas do enigmático, do irrevelável, do inefável. A comunicação parece tomar uma forma telepática, invisível, mimética. Chamar-lhe-ei espontaneidade. Ser espontaneo é comunicar, não idealmente mas completamente.

As Utopias dependem apenas do seu uso . Usar é representar, é pôr à prova o conceito. O uso da Utopia é inevitávelmente auto-consciente.

Fraternidade é acção de grupo. O seu objectivo é a morte ou o derrube do Pai, tal como Zeus que escapou a Saturno libertando os seus irmãos. Liberdade é a passagem do estado contestatário, transgressivo, à maturidade, ao Estado Fraterno. É aqui que se podem incluyir os ritos de iniciação ou passagem. A Festa dolorosa. A luta fracticída (que pode incluir ou não a morte de irmãos). A passagem do profano ao sagrado. A morte para uma natureza meramente exterior e o renascimento para um mundo sem dicotomias interior/exterior. O meu corpo (a minha representação) é o Mundo.

A dádiva faz-se na festa, dolorosamente, no confronto corpo a corpo. Na descida ao mais imundo. No reverso do tabú que preversamente leva à regeneração do mesmo tábu.

A festa é a festa da igualdade. Tudo é permitido. Todos são iguais. Nenhum lugar é hierarquizado. O que os une é a circulariedade (e a circulação). O que os mantém é um centro invisível.

Fraternidade é Carnaval. É carne que vale. Cada um se mascara de si mesmo, não do rosto cultural (que repressivamente é o Pai). Depois vem a organização fraterna. O regresso à cultura. A uma cultura diferida feita de boas-intenções.

Representar a liberdade/igualdade/fraternidade é representar na liberdade/igualdade/fraternidade. Irracionalmente e conscientemente. Quer se queira quer não está-se na arena política. Nada é inocente. As boas intenções podem devir paradísiacas ou infernais. Mas mais do que as intenções (o programa ensaiado das vontades) o que conta são os actos.

Rubens, desta perspectiva, é muito mais revolucionário que muitos artisras engagés.

«Connais-je encore la nature? Me connais-je? - plus de mots dans mon ventre. Cris, tambour, danse, danse, danse, danse! Je ne vois même l'heure où, les blancs dèbarquant, je tomberai au néant.
Faim, soif, cris, danse, danse, danse, danse!» (Rimbaud)