Tinha dado como desaparecida a versão original do Alquimista Cornudo tal como foi escrita em meados de 1984, mas aqui está para comparar com a do
Triplo V. São poemas "homeostéticos" no sentido em que são paradoxológicos e post-paradoxológicos. Neles desemboca a vontade de ultrapassar ao lado Pessoa e Borges. Mas as curvas são apertadas!!! Falta em surdina o tom mais exotérico (para as massas!) e pato-assado/cospe-no-gurú dos textos grupistas.
O ALQUIMISTA
CORNUDO
E A QUÍMICA
CARNUDA
Divisas escritas por um mui cornudo alquimista
reabilitador de histriónicas doutrinas
e adorador de deuses escondidos
1
Ès demasiado alto para tocares os céus
e demasiado baixo para remexeres as terras.
2
Queda nenhuma foi primeira.
Queda nenhuma será derradeira.
Elevando-te e agachando-te
diverte-te no intermédio.
3
A linguagem é o excremento da boca
ou a flauta que ninguém toca?
4
Do ignoto nenhum sinal pode a crença confirmar.
Em doce cegueira o nega. Cegueira de o declarar.
5
Insuficiente e excessivo, em que residuo resido?
No frágil, raro, constante e instável?
6
Sê o teu próprio escravo sem te escravisares.
A mais ninguém deves servir ou ceder ou querer libertar.
7
Nenhuma crença é exacta
e como esquivo alimento
a saborear demora.
8
Não somos sonhos ou sombras.
Sobre esse museu de hábeis metáforas prevalecemos
em incertos e futeis canones sobrando.
9
Muitos te amam: espessos, carnívoros.
Em segredo trabalham luminosas sombras.
10
Oh templos cujos muros exactos
deuses nenhuns alimentam.
11
Pense-se, não num mundo corrompido
mas na corrupta eternidade.
12
...para que o incêndio retorne
qual guerreiro inocênte.
13
Colaboramos neste artíficio
cujas regras ignoramos
ou fingimos ignorar.
14
Vi um deus hecatombico, lascivo,
aproximar-se: de plumas incandescentes.
15
A mão trabalha... Detem-te!
È excessivo o que dizes!
16
Depoem as oferendas
no intimo dos deuses!
17
Que Nome nenhum me procure.
Resta-me enterrar os que me pertencem
para que invioláveis brilhem...
18
Do Esquecimento os ritos pratico:
que os deuses apaguem das horas erráticas
a Agonia
19
Porque o que vejo foi cinzelado primeiro
pelo desejo, deus hábil.
20
..o raro abraço dos deuses...
21
Nenhuma divindade é concisa:
no mel dos tempos detêm-se
por vezes em templos exactos.
22
Periférico vem
de zonas talhadas especularmente.
23
A este paraíso fomos dados
para que as metáforas celestes fossem infernais.
24
Ó púrpura dos centros instáveis!
Ò lazuli das periferias discretas!
Ò gargalhada selvagem das metas!
25
São esconderijos este rasto de palavras
que infecundo dito.
Celebrar não sei:
aos deuses solto grunhidos ou gritos.
26
Cinzelo teu nome repetidamente
em todo o muro.
Agora jamais te poderás esconder
nem nada te é seguro.
27
Tu, em cujas negações te manténs negando
das negações a negação:
o negar desaprendes.
28
E o deus que se manifesta faz-se impuro
sem que haja mácula.
29
À escuta de Hiperion tripartido
os deuses no esquecimento venero
sem olhos, boca ou ouvido.
30
Ignoramos o centro desta esfera
cuja terrivel presença nos faz ausentes.
31
Oh, catastrófica eternidade!
32
Qual deus imperfeito e rústico
que em si abriga um simétrico, que lhe é maior:
dividade sem desgaste ou queda,
puramente inversa e sem polaridades.
33
As sombras que não o são
projectam-se para o não serem:
meros vestígios de luz...
34
O que nos dilui
é a própria presença,
e o que nos solidifica
é a ausencia.
35
Todo o deus que se manifesta é impuro
e o que cala ignoto.
36
As escadas conduzem-nos a abismos
móveis e difusos.
37
Nenhum templo, nenhum deus, ninguém...
Pelo incendio me perpetuei.
Por ele, dos deuses pai.
38
E tu Hipnos
porque semeias o pãnico
nos esquecimentos?
39
Surgem infindos e tornam-se escassos,
escassos se dão e infindos se disfrutam.
40
O destino sorri. Ignorando-o
traímo-lo. Adivinhos sejamos
de belos oráculos.
41
Pois o deus que se manifesta
anula-se no manifestar.
42
Grávido de Nomes e não de inominação
abertos os templos prefiro.
43
As idades sucedem-se: dogmáticas.
Ascendem a outras idades: enigmáticas.
44
Esta dádiva a todo o momento
de os deuses se mostrarem.
45
A infidelidade procura-me com suas visões
multiplas, descarnadas, insólitas. Plural sou
sem saír da brusca casa.
46
Os deuses não habitam nem em altas
nem em baixas moradias. Vagueiam
nómadas dos seus atributos.
47
Os teus atributos calam-me.
Mudo, meu espanto fala.
48
O riso hábil e discreto
sobre os panos e pânicos do trágico:
nenhuma catástrofe foi jamais.
49
Hálitos de imitar : fulminantes.
E a imitação preferível ao imitado.
50
A castidade abandonou-nos.
Da ascese a retenção perdeu-se.
Como venerá-los?
Como servir a íntima perfeição?
Como venerar a exacta incompletude?
51
O convívio prefiro a inconfidentes buscas...
52
Aguardando diferenças coloco espelhos.
Ou serei colocado?
53
A voz de Zeus não o imita. Mente!
Não é da natureza dos deuses o falar.
54
Tu, que prescreves do devir
os hilariantes enigmas...
55
Em rápidas estruturas que, crueis,
permitem os augúrios e as ilusões,
vogamos delicados em insignificantes gestos.
O tempo desgasta-se. E o mínimo é o Único
na imprecisão das irrepetíveis repetições.
56
Gémeo do tacto
jactante foi.
Seus hálitos amaram-no
tanto quanto as rosas o traíram.
57
Porque dizes que te preparas
para as do devir fadigas?
Momento és do infatigável momento,
e a ele sempre retornas
e dele e nele sobras.
58
Oh, excesso incalculável
dos degradados enigmas!
Oh mingua justa
das violentas evidências!
59
Para o silêncio dos deuses
não há acesso
mas seus atributos
musicamos
e p’lo ritual
os disfrutamos.
60
Que tudo te seja oferecido
e assim se apresente
a impresentificável presença!
61
Agora que somos dois
damos do outro a falta.
Sempre algo sobra
finda uma dobra alta.
62
O nome mantem os Intocáveis na distância
quando não são nomeados.
63
Os deuses são o contrário do que dizem:
só os escutas quando se calam.
64
Justo é o devir, mas injustos
seus nomes e formas.
Quando escutares oráculos
lê nas entrelinhas da fatalidade.
65
Que um deus obreiro me abrase
sem se mostrar ou esconder
nem sob impuros disfarces,
e que nesse ignoto segredo
faça meu o seu teatro.
66
Agora que são fluídos os ritos
e que os deuses se calaram
para entredizerem em entractos
aos poucos que os sabem lembrar,
não creias no esquecimento
que esquecidos estão a obrar.
67
Se se faz inviolável
o pensamento
inviolável permaneça
o pudor ignorando
às irrecusáveis violações
aberto.
68
Inúmeras oferendas faço...
Mas quem delas sabe?
Nem eu, quando as coloco
no dos deuses terraço!
69
Não contes os dias que passam.
Antes os deuses finge venerar
com o riso iluminando a face.
E a todos os contrários te entregues
moderando e excedendo nos actos.
70
Que sei do òcio?
Que é melhor não pensado
porque de pensamento semente.
Ociosos sejamos
erigindo monumentos!
71
Não há actos simultaneos:
tu e eu nunca fomos contemporâneos,
e é diverso o tempo em que vivemos.
Da obscuridade nascemos
na inactualidade perecemos!
72
As rosas são sempre verdes
nas negras matas da sorte!
73
Dogmas preferiria, deuses,
à dúvida nefasta.
Mas no fingimento de ambos
é que a verdade se arrasta.
74
Fulgurações divinas
em sexualíssimos hálitos
unânimes penetram.
75
Quando Cronos regorgita
em que oráculos acredita?
76
Negando negações sobre negações
não nos despedimos de afirmar.
Apenas nos exilamos
das traições do proclamar.
77
Há vestigios de outras andanças
e ambições
quando ascéticos ou ligeiros emudecemos
sem alusões.
78
Os deuses que nos moldaram
têm no mundo o espelho
da eternidade que não sabem.
79
No que é erro cometido
vem o prazer prometido.
80
A verdade, fénix dividido
em duplas metades renasce.
81
Linguagem traiçoeira
porque me aprisionaste?
Tua cela é o Éden
e dos deuses a face.