do neo-canibalismo ao tretoterismo, o caótico corpus do movimento homeostético, suas tricas, sequelas, etc.

domingo, 12 de agosto de 2007

C. & E.(natureza)


«Esta é a mãe animal
caçada na floresta mitológica,
a besta aluada sobre as redes
e as flechas;
paisagem que eu crio fora
com o meu movimento,
beleza acerba de um rosto
já sem fronteiras.»

Herberto Hélder

«Mater semper certa, pater incertus». A natureza é constância (apesar das erupções vulcânicas e dos tremores de terra). Nela viemos à luz e a ela regressaremos. O objectivo da fraternidade é compreender esta mãe para que possa organizar uma sociedade futura. A compreensão de algo permanente, não-agitado, do que dá origem.

A tentativa de compreensão é fraternal (e fracticída) e egoísta: é Cain que mata Abel; Caín, o proprietário.

Existe uma dicotomia muito forte. A mãe está presente. Mas é alguém com a qual se está em dívida: deve-se-lhe a vida. Ela envolve-nos. Está presente em cada acto. Procuramos distingui-la de nós mesmos. A consequência é: separação e ângustia. A única maneira de superar essa ângustia e dívida é morrermos: regressar ao seu ventre.

É esse o sentido dos ritos de passagem. Voltar a Ela, unindo o Eu e o Isso: «o meu corpo é o teu corpo, o teu corpo é o meu corpo» (Ernesto de Souza). Supressão que coincide com a supressão da propriedade. Abolição temporária da propriedade. A terra não é de todos nem de ninguém. Todos são a terra: território, geografia, àrvores, rios, pedras. A natureza pertence ao corpo tal como este lhe pertence. Novo nascimento: não existe mais antropomorfismo na natureza nem fisiomorfismo no homem. Ambos se misturam e unem numa representação única, monstruosa. «O grande charme dos bosques e dos prados é a sugestão de que existe uma relação entre o homem e a vegetação. Eu não estou só e iosolado. Eles saúdam-me, e eu também os saúdo.» (Emerson)

Tudo tem um sentido simbólico. A ordem vísivel é substituída por uma invísivel. A relação entre os vários sistemas e os vários grupos cria uma atmosfera mágica de unidade. A ambiguidade dos signos faz cintilá-los. Há nisto algo de extraordinário.

Tudo parece evidente. O passado e o futuro, o tempo da história e o tempo da profecia, tempos do incerto, dão lugar ao tempo presente: «Quem olhou o tempo presente, olhou todas as coisas: as que aconteceram num insondável passado e as que acontecerãi num futuro» (Marco Aurélio).

A representação da natureza, da mãe, é uma relação edipiana, ou é por ela cortada, dilacerada. Sabemos que o corpo da mãe também é o nosso corpo. Representar a mãe sempre foi um programa artístico, desda as Vénus Megalíticas, às Madonas ou à famosa pintura de Courbet.

Paul Klee, referindo-se à representação da natureza dá-nos uma definição clara:

« Ainda há pouco tempo, o estudo da Natureza procurava as imagens de superfície do objecto filtradas pelo ar. Uma arte de visão optica. (…) Por meio do nosso saber, o objecto dilata-se para além da sua aparência e mostra ser mais do que o seu aspecto exterior nos dá a conhecer. As experiêncvias assimrealizadas tornam o Eu capaz de tirar instintivamente cfonclusões sobre o âmago das coisas… Estas experiências ficam, no entanto, aquém dos caminhos que conduzem a uma fusão do objecto e que establecem uma relação de ressonância entre o Eu e o objecto que ultrapassa as bases opticas:

a) O caminho não-òptico com raízes comuns na terra, que a partir de baixo se eleva no Eu para conduzir ao Todo.
b) O caminho não-òptico com raízes cósmicas e que vem de cima»

O artista aspira aqui a uma unidade que pressupõe um terceiro elemento. A esse elemento chamarei acaso. Contrapondo-se ao tempo linear da natureza ele aparece com intervenção histórica num dado instante encarnando a catástrofe como dado natural.




Este mestre Acaso é a rede das estranhas coincidências. Uma maximização da improbabilidade é impressa no Todo criando o sentido que faltava depois da unificação/fusão indivíduo-natureza. Exprime o mistério e o fascínio. É o determinismo hipercomplexo. Nada é explicito. Algo vem de não se sabe onde, fugindo à ordem simbólica.

No seu manifestar-se há o peso da ética organizacional. A cultura da «mão direita» tenta defender-se da desagregação assimilando o menos possível as catástrofes, chamando-lhes Aviso, Mensagem, Revelação, etc. O Medo reprime e reduz o Acaso. Torna-se um incidente histórico, descontínuo, terrível, como o poder impiedoso que institui o sagrado, o proíbido!

O Acaso é o verdadeiro pai de todos nós. As improbabilidades gritantes que somos tornam paradoxal o direito à existencia. O aleatório alcança o seu sentido máximo ao instituir a vida e ao regenerá-la. O aleatóreo é o alimento quer do progresso quer da auto-conservação. Este pai é etéreo e forte como um centro. A aceitação da centralidade, de um ponto de apoio, é o príncipio básico da organização simples, e encontra-se disseminado nos atractores da organização complexa (que pode comportar um número significativo de centros).

O centro é Taboo. Seja ele totém, montanha, àrvore, pedra, escada, etc. Ergue-se para o céu, fálico, erecto. A interdição é consequência da necessidade de preservação. Proibir para manter a identidade. Proibir para conservar.

Ora esta interdição leva a uma ocultação (censura?) do momento fundador. A legitimidade, paradoxal, torna-se inquestionável. O pénis domina invisivel. Fascínio. Fascínio do interdito. Os rituais da «mão esquerda» tornam explícito, demasiado explícito, esse poder. Ritualmente o revelam. Autorizam-no e transgridem-no. O sagrado é a experiencia festiva-revolucionária e não a reverência institucional. O sagrado é a divindade, directamente, e não a intermediaridade das «igrejas».

O poder que o acaso investe é a capacidade de dar expressão a formas de organização mais complexas e completas. A necessidade é apenas o sintoma de que o acaso já se instalou e que quer ser dito, exprimido, consciencializado. É o heroi que se sacrifica em nome dessa conflituosa expressão. À sua aventura não são insensíveis os herois e deuses antigos, que ora estão contra, ora a favor. Dos actos de heroismo depende o seu esquecimento ou a emergência de deuses mais fortes.

É ester poder que torna viável o poder. São estes actos a que podemos chamar saída, Exodo, o caminho no vazio, a experiência nómada. A todo o Génesis se sucede um Êxodo. O deserto é a desabitação, a não-propriedade, a proletarização. A Lei surge como tentativa de regulação dos poderes invisíveis, como substituição dos deuses pela palavra. Logos versus iconofilia. A guerra é recorrente.

O dadaísmo instituíu nas artes ocidentais o Acaso como Método. O ready-made desloca a atenção para a presença insuspeita do presente: «There is no thing as chance. A door may happen to fall shut, but this is not by chance. It is a consciencious expirience of the door, the door, the door.» (Kurt Schwitters).

O acaso é um instrumento pré-existente. Só há que MANIPULÁ-LO! Trabalho a três. O terceiro é o misterioso colaborador. Trabalho de unificação, salada de sagrado e profano. Trabalho de transformação: «São as coisas que não conheceis que mudarão a vossa vida!» (Vostell)

O terceiro ente é não-ente: «se, nas obras de arte, o não-ente pode emergir subitamente, elas não se apossam dele corporalmente com um golpe de magia. O não-ente é-lhes mediatizado a partir de fragmentos do ente, que eles congregam para a apparition. (…) As obras de arte possuem a sua autoridade por obrigarem à reflexão, a partir de onde elas poderiam, enquanto figurasd do ente e incapaz de convocar o não-ente para o existente, tornar-se a sua imagem predominante, ainda mesmo que o não-ente não existisse em si.» (Adorno). Ou como diz Mallarmé: «O essencial duma obra consiste exactamente naquilo que não está expresso»!

Esta capacidade de vislumbrar o não-explicito encontra um eco nas forças que concorrem sob a denominação da Unidade. O Todo não é tanto a consciencia do todo quanto a vontade de incluir e domesticar os restos.

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